Por que um país tão rico como o Brasil nunca tem dinheiro para fazer investimentos em áreas prioritárias como saúde, educação e infraestrutura, e, principalmente, repassar mais recursos aos municípios onde realmente se encontra as necessidades do cidadão? O problema é unânime e o mesmo para todas as áreas: falta de dinheiro. Mas por quê? Para trazer luz a esse assunto o Jornal Bom Dia entrevistou a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli. A entidade sem fins lucrativos, desde os anos 2000, promove estudos e pesquisas relacionados ao tema do endividamento público brasileiro. “É preciso rever o modelo econômico que privilegia o Sistema da Dívida, o modelo tributário regressivo e a política monetária suicida praticada pelo Banco Central”, afirma.
Jornal Bom Dia: A dívida pública brasileira é, em se tratando de recursos públicos, o maior problema do país? Por quê?
Maria Lucia Fattorelli: Sim, além de absorver, anualmente, quase a metade do orçamento federal para o pagamento de juros e amortizações, a dívida pública tem sido a justificativa para contínuas privatizações de patrimônio público, para a realização de contrarreformas (como a da Previdência) e também para alterações legais que ditam todo o funcionamento da economia do país, a exemplo da EC-95, que estabeleceu teto para todas as despesas e investimentos públicos, mas deixou livre os gastos financeiros com a dívida pública. O governo e a grande mídia em geral culpam os investimentos sociais ou as despesas com os servidores públicos como se fossem os “vilões das contas públicas”, omitindo-se a questão da dívida, que é o verdadeiro problema das contas públicas.
Por que esse assunto virou mito e praticamente economistas do país, imprensa, não falam sobre a dívida?
Em primeiro lugar, quase não há bibliografia sobre o problema da dívida pública e a necessidade de uma auditoria, apesar da previsão constitucional. Os modelos econômicos estudados nas universidades não abarcam a questão da dívida pública de forma apropriada. Quando o tema é abordado, é feito de forma superficial, sem o estudo de suas origens, fatores de crescimento, sem qualquer análise de documentos etc. Assim, não há conhecimento acumulado sobre o tema. Adicionalmente, as estatísticas publicadas pelo Ministério da Fazenda e Banco Central são cada vez mais pobres em dados, sendo que recentemente alguns quadros que o BC costumava publicar foram suprimidos e, para sabermos o mesmo resultado precisamos ficar fazendo vários cálculos. Assim, além de faltar conhecimento, falta informação, o que prejudica o trabalho dos economistas, jornalistas, gestores públicos, entre outros profissionais. Quem ganha com o funcionamento do Sistema da Dívida – principalmente o setor financeiro nacional e internacional - não tem interesse que o tema seja conhecido e desmascarado; e este setor financia grande parte dos meios de comunicação. Nesse sentido, a Auditoria Cidadã da Dívida tem prestado um grande serviço à Nação, jogando luz sobre o processo de endividamento público federal, dos estados e até de municípios, inclusive denunciando o novo mecanismo gerador de dívida pública por meio da chamada “Securitização de Créditos”. Cabe mencionar que existem muitos profissionais que enfrentam o problema da dívida, porém, suas teses não são repercutidas pela grande imprensa, cujo lema tem se resumido à frase superficial “se há uma dívida, tem que pagar”. Porém, antes de pagar, temos de saber: que dívida é essa? De onde ela veio? Para que serviu? Estas perguntas poderiam ser respondidas por meio de uma auditoria, que está prevista até na Constituição, porém jamais foi realizada. A auditoria (com participação da sociedade) foi aprovada por 3 vezes pelo Congresso Nacional, mas foi escandalosamente vetada 3 vezes seguidas, por Dilma e Temer.
Qual o valor atual e por que tomou essa proporção de hoje?
A dívida “interna” federal já ultrapassa a marca dos R$ 5 trilhões, mas o mais grave é que esta dívida monstruosa não serviu para desenvolver o país, mas foi gerada por mecanismos financeiros que fizeram o seu estoque aumentar, ao mesmo tempo em que os recursos foram sendo transferidos para o setor financeiro, que é o seu maior beneficiário.
Apenas para citar um exemplo, cerca de R$1,2 trilhão dessa dívida é referente a um mecanismo que se destina a remunerar a sobra de caixa dos bancos. Assim, essa montanha de dinheiro (cerca de 18% do PIB), que deveria ser emprestada a pessoas e empresas a juros baixos para a realização de investimentos - tem sido simplesmente recolhida pelo Banco Central, que em troca lhes entrega títulos da dívida interna e paga aos bancos juros altíssimos, que somaram quase meio trilhão de reais nos últimos 4 anos, drenando ainda mais dinheiro das áreas sociais para alimentar o setor financeiro, e empurrando as taxas de juros de mercado para níveis estratosféricos. Este é mais um exemplo de dívida ilegítima.
Além de gerada de forma questionável, o Brasil paga as taxas de juros mais elevadas do mundo e o fator que mais contribuiu para esta explosão do estoque da dívida foi justamente a aplicação de juros sobre juros, conforme comprovado inclusive pela CPI da Dívida Pública concluída na Câmara dos Deputados em 2010. A sociedade brasileira não tem se beneficiado dessa dívida e só é chamada a pagar a conta. A dívida externa bruta já ultrapassa US$550 bilhões e temos também dívidas de estados e municípios. O Sistema da Dívida atua em todas as esferas.
A dívida é o maior gasto do orçamento federal? Explique?
Conforme mencionado, os juros e amortizações da dívida pública consomem quase a metade de todo o orçamento federal anualmente, o que em 2017 representou quase R$1 trilhão, enquanto áreas sociais fundamentais como saúde e educação consomem cerca de apenas um décimo disso. Muitos analistas conservadores e até mesmo alguns economistas que se dizem de “esquerda” têm criticado este dado, alegando que o valor destinado à dívida pública se trataria de mera “rolagem” ou “refinanciamento”, ou seja, corresponderia a mera troca de títulos que estão vencendo por outros novos títulos. Caso essa desculpa fosse verdadeira, o estoque da dívida se manteria constante, o que não está acontecendo, pois o seu estoque está crescendo aceleradamente! Desde 2010, nós da Auditoria Cidadã da Dívida temos denunciado que grande parte dos juros nominais pagos anualmente (centenas de bilhões de reais) estão sendo contabilizados indevidamente como se fosse “amortização” ou “rolagem”. Esta foi uma das nossas principais descobertas durante a CPI da Dívida Pública concluída na Câmara dos Deputados, porém, apesar da denúncia entregue ao Ministério Público Federal desde 2010, até hoje nada foi feito a respeito. A maioria dos economistas conservadores desconhece essa manobra e fica repetindo críticas ao gráfico elaborado pela Auditoria Cidadã, que, cabe dizer, utiliza somente dados oficiais.
Quais as consequências da dívida para a sociedade brasileira? Ela impede investimentos em educação, saúde, infraestrutura, industrialização, a economia como um todo?
Exatamente. O Brasil é um país rico, o governo federal tem mais de R$1 trilhão em caixa, quase US$ 400 bilhões de reservas internacionais, tem uma receita de centenas de bilhões de reais todo ano com novos empréstimos, dentre muitos outros recursos. Porém, este grande volume de dinheiro não tem sido destinado para o desenvolvimento do país, pois permanece entesourado, servindo de garantia para obter a “credibilidade” dos rentistas nacionais e estrangeiros, reservado para pagar uma questionável dívida que nunca foi auditada e sobre a qual recaem diversos indícios de ilegalidades e ilegitimidades. Adicionalmente, a sobra de caixa dos bancos disfarçada de “Operações Compromissadas”, de cerca de R$ 1,2 trilhão, como antes mencionado, gera ao mesmo tempo: aumento do estoque da dívida interna; aumento da despesa com juros e, ainda por cima, provoca escassez de moeda na economia, empurrando as taxas de juros de mercado para níveis estratosféricos e impedindo investimentos geradores de emprego, renda e serviços para a população.
Como ela se alimenta?
Ela se alimenta de diversos mecanismos financeiros que geram dívida, como por exemplo, as transformações de dívidas do setor privado em dívidas públicas; salvamentos bancários (Proer, Proes); cobertura de prejuízos operacionais e com operações de swap cambial praticadas do Banco Central (que remuneram com dinheiro público os investidores de acordo com a variação do dólar); as operações compromissadas, ou seja, a remuneração da sobra de caixa dos bancos mencionada anteriormente, entre outros. Sobre a dívida gerada de forma ilegítima, incidem os juros mais altos do mundo, historicamente, que são o principal fator de multiplicação da dívida por ela mesma. Embora a taxa básica de juros (“Taxa Selic”) esteja em 6,5% ao ano, na prática os juros médios incidentes sobre os títulos da dívida pública federal são de cerca de 10% ao ano, conforme dados oficiais.
Existe uma maneira de estancar essa sangria?
Sim, com uma ampla e profunda auditoria, feita com participação da sociedade civil, que denuncie e mostre didaticamente para toda a população como se fabricam estas dívidas ilegítimas. Desta forma, é possível virar o jogo político que atualmente sustenta o Sistema da Dívida.
Auditar a dívida seria o caminho? Isso é constitucional?
Sim, a auditoria está prevista na artigo 26 das disposições transitórias da Constituição de 1988, porém, jamais foi realizada. Recentemente, a Justiça Federal acatou pleito da Auditoria Cidadã da Dívida e determinou, em decisão histórica a realização desta auditoria, porém, escandalosamente, o governo (por meio da Advocacia Geral da União, que deveria zelar pelo Patrimônio Público), e a mesa diretora do Senado Federal, imediatamente recorreram, e conseguiram derrubar a liminar que determinava a instalação imediata da comissão mista prevista na Constituição. Esta é mais uma evidência de que é urgente e necessário realizar esta auditoria. Por que o medo? Quem não deve não teme!
Algum país no mundo já fez auditoria da dívida? Os resultados foram positivos?
Sim, o próprio Brasil fez auditoria durante o governo Getúlio Vargas e isso permitiu uma grande redução tanto do estoque da dívida externa como do volume de pagamentos, permitindo avanços em diversas áreas sociais e investimentos que estão aí até hoje. Recentemente, o Equador também fez uma auditoria e chamou a sociedade civil equatoriana e internacional para participar (eu mesma tive a honra de ser nomeada em decreto do presidente Rafael Correa) o que resultou na descoberta de graves ilegalidades nesta dívida, que foram divulgadas em cadeia nacional. Como consequência, alterou-se a correlação de forças e houve grande redução na dívida externa equatoriana junto a bancos privados internacionais, liberando recursos que se destinaram a financiar o desenvolvimento socioeconômico daquele país. Na Grécia também foi realizada uma auditoria no âmbito do legislativo, porém, o primeiro ministro Alexis Tsipras ignorou os resultados, tanto da auditoria como do importante referendo público, e preferiu render-se ao sistema financeiro.
A dívida está diretamente relacionada à maneira como se conduz a política econômica do Brasil? Se fala em aumento de impostos, corte de investimentos, mas nunca em rever a dívida, por quê?
Sim, toda a política econômica é voltada para garantir os privilégios financeiros. Desde a década de 90, mais especificamente de 1995 até 2014, produzimos mais de R$1 trilhão de “Superávit Primário” e no mesmo período a dívida interna federal saltou de R$ 89 bilhões para R$ 4 trilhões, comprovando que a dívida cresceu por causa dos seus próprios mecanismos e não devido aos gastos sociais.
Apesar disso, a legislação que faz parte do Sistema da Dívida coloca como prioridade absoluta o pagamento de juros e amortizações da chamada dívida pública. Instrumentos legais como a “Lei de Responsabilidade Fiscal” (que limita gastos sociais, mas não estabelece limite algum para o prejuízo do Banco Central com sua política monetária insana, que é transformado em dívida pública); e mais recentemente a Emenda Constitucional 95/2016 (que absurdamente estabeleceu teto rebaixado para todos os investimentos sociais e gastos de manutenção do Estado por 20 anos, deixando livres, sem controle ou limite algum os gastos com a dívida pública), drenam recursos para os gastos financeiros e impedem que grande parte dos recursos do país sejam utilizados para investimentos sociais.
Os grandes bancos exercem uma chantagem diária, elevando os juros exigidos para adquirir novos títulos ofertados pelo governo, além de exigir a manutenção da liberdade de movimentação de capitais, benesses tributárias e contrarreformas. É preciso romper esse círculo vicioso, por meio de uma auditoria, para que a política econômica possa ser alterada.
A dívida é a nova forma de exploração econômica, mantida pelos próprios brasileiros?
Temos dito que a dívida funciona como um sistema, que batizamos de “sistema da dívida”, isto é, um mecanismo de contínua transferência de recursos públicos em favor do setor financeiro nacional e internacional, articulando o modelo econômico, o aparato legal, o funcionamento da grande mídia, o controle do conhecimento, benesses tributárias etc.
Esse sistema vem adquirindo roupagem cada vez mais sofisticada para tentar esconder esse verdadeiro roubo de recursos, e não é mantido apenas por brasileiros, mas principalmente por bancos, tanto nacionais como estrangeiros.
O momento atual é muito grave, diante do alastramento da chamada “Securitização de Créditos” em vários estados e municípios do país. Esse esquema gera dívida pública de forma disfarçada e esta é paga por meio do desvio da arrecadação tributária, de tal forma que grande parte dos recursos arrecadados de contribuintes sequer alcançará os cofres públicos.
Se já enfrentamos gravíssimos problemas atualmente, imaginem a situação decorrente de um orçamento ainda mais encolhido, devido ao sequestro de receitas. Apesar de ilegal (o PLP 459/2017 ainda tramita na CFT da Câmara dos Deputados), esse esquema tem se alastrado e tem sido fortemente combatido pela Auditoria Cidadã da Dívida. Depois de lucrar trilhões com a chamada dívida pública, o grande capital financeiro está se apropriando diretamente da arrecadação tributária. Esta constitui, na minha opinião, a mais grave forma de exploração que, se continuar se alastrando, aniquilará completamente a capacidade de funcionamento do Estado e a prestação de serviços públicos à população.
O Brasil está fadado ao subdesenvolvimento, pobreza e miséria se não rever a lógica do sistema financeiro atual?
Infelizmente sim. Aplicando apenas 0,25% do orçamento federal em Ciência e Tecnologia, ou apenas 4,1% em educação, ao mesmo tempo em que as riquezas do país são destinadas principalmente para uma elite financeira e primário-exportadora, o Brasil sofre um processo de desindustrialização, um aprofundamento na concentração de renda e o aumento da miséria e da violência. Não há como ter um país independente tecnologicamente se está amarrado pelo “sistema da dívida”.
Na dívida dos estados a lógica é a mesma?
Sim, pois no final dos anos 90 as dívidas dos estados foram refinanciadas pelo governo federal em processo obscuro que empacotou passivos de bancos estaduais e vários outros valores sem a devida transparência, sem considerar o baixo valor de mercado dos títulos estaduais, sem considerar as denúncias de fraudes (como denunciado pela CPI dos Precatórios por exemplo). Além de juntar tudo isso, a União aplicou aos estados condições financeiras insustentáveis: passou a atualizar todo esse montante mensalmente, de forma cumulativa, pelo maior índice existente no país (IGP-DI) e, ainda por cima, aplicou altíssimas taxas de juros. No início de 1999, a dívida dos estados com a União era de R$ 93 bilhões. Até abril de 2016, os estados pagaram R$ 277 bilhões (ou seja, pagaram a dívida 3 vezes) e, ainda assim, deviam 5 vezes o valor refinanciado (cerca de R$ 476 bilhões em abril de 2016). Todos estes R$ 277 bilhões pagos pelos Estados à União foram destinados, por lei, para o pagamento da questionável dívida federal. Por esta razão, o sistema da dívida está interligado entre os entes federados.
Como originou a dívida do Rio Grande do Sul?
O histórico das dívidas dos estados brasileiros segue uma mesma lógica: dívidas iniciadas na época da ditadura militar sem a devida transparência em relação aos credores e à aplicação dos recursos; aumento do endividamento de forma obscura, sempre com elevadíssimas taxas de juros; impacto da política monetária federal; refinanciamento pela União a partir de 1997, somando-se ao estoque da dívida dos estados os passivos de bancos estaduais (mais uma vez sem transparência alguma); aplicação de condições financeiras extorsivas pela União aos estados. Ao chegar a um ponto de completa insustentabilidade, a União está propondo moratória de 3 anos aos estados, ou seja, estes deixarão de efetuar pagamentos à União por 3 anos, mas todas as parcelas devidas serão acumuladas e atualizadas. Essa proposta vem sendo objeto do “Plano de Recuperação Fiscal” que no caso do Rio de Janeiro incluiu a implantação do esquema da “Securitização de Créditos”. É preciso verificar com atenção o que está por trás dessa moratória de uma dívida que já foi paga pelo menos 3 vezes, mas ainda se deve 6 vezes!
No caso do Rio Grande do Sul, o Ceape-TCE-RS, sindicato que representa auditores do Tribunal de Contas do Estado, tem publicado estudos e artigos que apontam para a necessidade de completa auditoria dessa dívida. É preciso se fazer uma ampla auditoria também sobre as dívidas dos estados.
É verdade que já foi paga?
Os números indicam que já foi paga cerca de 3 vezes! Conforme tratado em recente audiência pública realizada na ALERS, da dívida original de R$9 bilhões (em valores atualizados) foi paga a quantia de R$25 bilhões à União, mas o Estado ainda deve R$ 60 bilhões! E ainda contraiu dívida externa que foi utilizada para pagar mais uma parte dessa dívida! É um processo insano! A auditoria é urgente, em especial porque a incidência de juros sobre juros, que provocou a multiplicação da dívida por ela mesma, é ilegal, segundo a Súmula 121 do STF.
O que os estados precisam fazer para solucionar esse problema que inviabiliza investimentos?
Assim como na esfera federal, é preciso rever o modelo econômico que privilegia o Sistema da Dívida, o modelo tributário regressivo e a política monetária suicida praticada pelo Banco Central; é preciso respeitar o Federalismo, a começar de ampla auditoria da dívida dos estados, com participação social, para que se possa rever este processo e o dinheiro pago a mais seja devolvido aos estados.