Se, como canta Criolo, “a verdade é o todo e o todo é povo”, o número de indivíduos que vivem em situação de rua no Brasil é o reflexo de uma sociedade falha e indiferente. Isso porque, se até mesmo os direitos básicos, como a igualdade e a propriedade, são negados à parcela marginalizada da população, ter uma vida digna chega a soar como privilégio.
O levamento divulgado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apresenta, com base em dados coletados a partir de informações do Cadastro Único de Programas Sociais, um aumento de 25% dessa população. Enquanto em dezembro de 2023 havia 261.653 pessoas vivendo em situação de rua no Brasil, o total saltou para 327.925 no mesmo período de 2024.
Atualmente, em Erechim, conforme o Gabinete da Secretaria de Assistência Social, há 12 pessoas em situação de rua, número que se mantém desde o ano de 2021. O órgão considera, neste balanço, apenas quem vive no município, sem contar as pessoas itinerantes, que estão de passagem por aqui.
Não são apenas números
É importante lembrar que tais dados, ou até mesmo a falta desses, não são apenas números, mas representam pessoas. O serviço de atendimento à população em situação de rua é tipificado como de alta complexidade e, por isso, integra a Proteção Social Especial (PSE), conjunto de serviços, programas e projetos que busca enfrentar situações de violação de direitos.
No município, esse atendimento acontece na casa de passagem, o Abrigo Cidadão de Erechim, setor que desempenha o papel de acolhimento temporário aos indivíduos em situação de vulnerabilidade. A estrutura do albergue oferece 26 leitos, em alas feminina e masculina, separadas, e conta com uma equipe composta por monitores, segurança 24h, coordenador, higienizador, psicólogo e assistente social.
A busca por mudança
Durante visita ao Abrigo Cidadão, a redação do Jornal Bom Dia conversou com a equipe técnica do albergue, integrada pela assistente social e coordenadora de políticas públicas para pessoas em situação de rua e comunidades do interior, Tatiane Uecker, e pelo psicólogo, Rudicir Custódio Maciel Júnior.
A equipe relata que busca garantir os direitos das pessoas que passam pelo abrigo, viabilizando que superem a condição da situação de rua, a vulnerabilidade. Para isso, são feitos os encaminhamentos necessários em conjunto com a rede, visto que, geralmente, os atendidos já estão vinculados a um serviço social.
“A gente faz os atendimentos individuais, mas os nossos acompanhamentos aqui são pontuais porque, como é uma casa de passagem, a gente não consegue conduzir por tempo prolongado. Então fazemos o encaminhamento aos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), para que haja continuidade no acompanhamento”, destaca Tatiane.
A assistente social explica que o encaminhamento se dá conforme a situação enfrentada. “Se houve alguma situação de violência específica, vamos identificá-la para encaminhar ao serviço correspondente”.
Assim, conforme diagnóstico da equipe, o atendimento pode seguir no Centro de Referência e Apoio à Mulher (CRAM), no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), ou ao Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD), quando a condição é de dependência química. Se diz respeito à condição de saúde mental, então o encaminhamento se dá ao CAPS II.
“Em casa de menino de rua, o último a dormir apaga lua”
Embora o trabalho desenvolvido no Abrigo Cidadão de Erechim tenha demonstrado ser de fato transformador, com profissionais capacitados e dispostos a mudar a realidade da população em situação de vulnerabilidade social, o serviço possui limitações. A estrutura não comporta um número expressivo de pessoas e, conforme o regulamento, o tempo de permanência no abrigo é de 3 a 5 dias.
Ainda assim, a equipe conta que já chegou a receber 45 pessoas no albergue, durante o inverno rigoroso. Eles também fazem rondas noturnas para resgatar pessoas desabrigadas, buscando acolher a todos, oferecendo abrigo, alimentação nutritiva e higiene. Os recursos, tanto federais quanto municipais, são limitados, mas o Abrigo Cidadão Municipal segue oferecendo condições dignas de vida a quem teve o mínimo negado, ainda que por um período curto.
E agora, José?
Para que a comunicação aconteça de forma inclusiva, faz-se necessário buscar ouvir perspectivas que, tradicionalmente, não são sequer consideradas. Ciente disso, a redação do Jornal Bom Dia foi às ruas de Erechim para conversar com quem faz destas, morada. Em conversa com o José, “só José”, de 58 anos, que é de Planalto, mas veio para Erechim quando tinha 8 anos, buscamos tornar os números, que para muitas pessoas podem soar distantes, mais próximos, a fim de humanizar esses dados.
José não teve a oportunidade de aprender a ler e escrever, desde cedo começou a trabalhar na lavoura. Ele disse que, para quem não tem estudo, a tendência é que a vida vá ficando cada vez mais difícil, falou isso e sorriu, como quem já está calejado às adversidades diárias.
O senhor contou que foi ficando fraco com o tempo, até o diagnóstico de tuberculose, o que o impediu de exercer qualquer trabalho pesado. Tem feito o tratamento e, segundo ele, graças a Deus, aos excelentes profissionais que o atenderam e aos cientistas, tem se sentido melhor. José fez questão de reiterar o quanto considera o estudo importante.
Ele conseguiu se aposentar há pouco, mas o salário não é suficiente para que consiga ter uma vida - minimamente - digna. Teve que sair do aluguel porque se endividou, justamente por conta das contas da casa, e tem trabalhado recolhendo latas para vender, a 8 reais o kg.
Conforme relatava a situação em que vive, José questionava "me entende?". Talvez alguns não entendam, José, mas muitos compreendem e, não somente isso, mais de 300 mil pessoas vivem algo semelhante no país.
(Texto produzido por Marina Oliveira com a supervisão de Carlos Silveira)