Os últimos dias trouxeram um nível de frio para estas paragens sulinas que é típico de quando ainda existia inverno, não é mesmo? Quem se lembra? Numa parada para um café em um Café da cidade, eu peguei um caderno e fiz uma lista de canções que fazem referência ao frio e ao inverno – referências muitas vezes acompanhadas de vento e chuva. ‘Bora?
Eu podia ter pego o livro que estou lendo (“Nada mais será como antes”, de Miguel Nicolelis), já que estava em um bom lugar para ler um livro e fazia um dia frio – todo mundo irá lembrar de Djavan num exercício como esse de elaborar essa lista. Minha mente, então, viajou com Vitor Ramil: “Chove na tarde fria de Porto Alegre/ Trago sozinho o verde do chimarrão/ (...) O trânsito em transe intenso antecipa a noite/ Riscando estrelas no bronze do temporal...”. Por alguma razão (há mais de uma, pensando bem), Vitor Ramil me levou a Bob Dylan e ao refrão da (igualmente) fria e melancólica “One More Cup of Coffee”: “One more cup of coffee for the road/ Onemore cup of coffee before I go/ To the valley bellow.” “Mais uma xícara de café para (tomar) a estrada/ Mais uma xícara de café antes de eu descer o vale.” O chimarrão de Vitor e o café de Dylan: um está parado, o outro em movimento – e se parecem tanto, não se parecem?
Anotei: “Stay on these roads”, do A-ha. “Cold has a voice/ And it talks to me.” “O frio tem uma voz/ E ele fala comigo.” Os guris são noruegueses, devem saber do que estão falando. Eles têm a estética do frio lá deles. “The old man feels the cold”; “O velho sente o frio.” Isso, por artes da memória e de seus labirintos, me levou ao “Romance do Pala Velho”, de Noel Guarany: “Uma vez fui na cidade/ Na maldita perdição/ Lá perdi meu pala velho/ Que me doeu no coração.” Como Rousseau (Paris), Noel Guarany (Porto Alegre?) odeia a cidade grande – e, ainda por cima, lá perdeu o seu “pala velho” que “era o forro das crianças”: “Com esse meu pala rasgado/ Passava campos e rios/ Com esse meu palinha véio/ Não temo chuva e nem frio.” Era mais que um agasalho, portanto: era um refúgio.
De um jeito nem tão linear assim, o pala velho de Noel Guarany me conduziu a um outro pala: o “Poncho Molhado”, de José Cláudio Machado. “Poncho molhado/ O olhar na tropa e no horizonte/ Vai o tropeiro, devagar, estrada afora/ A chuva encharca, está chovendo desde antontem/ Dói dentro d’alma essa demora/ Irmão do gado ele se sente nessa hora/ (...) A tropa segue devagar mugindo tonta/ (...) E o tropeiro entristecido se dá conta/ Que o boi é bicho, mas tem alma sob o couro.” É um gaúcho quase-budista, não diríamos? A compaixão brotou de dentro para fora, enquanto a chuva molhava o poncho de fora para dentro.
Lembrei de músicas sem letra, também, é claro: o próprio “Inverno” de “As Quatro Estações”, de Vivaldi; ou o das “Quatro Estaciones Porteñas”, de Astor Piazzola. Lembrei até de Horácio “Chivo” Borraro e seu “Blues para un Cosmonauta”. E, ainda, de “Long Lonely Day ofWinter”, de Duane Eddy, um tema de guitarra bem legal.
Se os Beatles, ingleses habituados a um mundo cinza, expressaram sua realidade em canções que acolhem o calor, como “I’ll Follow the Sun” e Here Comes the Sun”, e se o sempre simbólico Bob Dylan ligou o frio do gelo (assim como o fogo) à verdade e à personalidade de uma mulher (“She’s true/ Like ice, like fire”; “Ela é verdadeira/ Como o gelo, como o fogo”), foi em Neil Young e “Four Strong Winds” que eu encerrei meu exercício – ou quase. “Four strong winds that blow lonely/ Seven seas that runhigh/ All the things that won’t change/ Come what may”; “Quatro ventos poderosos que sopram solitários/ Sete mares que se agitam/ Tudo isso que não muda/ Haja o que houver.”
Tudo isso que não muda? Só que muda, não é mesmo? Estamos, justamente, experienciando essa mudança. A mudança de tudo isso que muda, que mudamos.