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Expressão Plural

Tente outra vez: uma leitura

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Gerson Egas Severo.jpeg
Por Gerson Egas Severo
Foto Arquivo Pessoal

Na vez passada, eu prometi uma interpretação de “Tente outra vez”, canção de Raul Seixas que é a mais escutada nos serviços de streaming de música. Vamos a ela?

            A letra é assim: “Veja: não diga que a canção está perdida.” Esse “veja” pode ser interpretado como um coloquial “veja bem”, como se usa dizer quando se quer que alguém seja dissuadido de algo e considere uma outra ideia. Mas pode, também, ser um “veja” no sentido de mostrar para alguém, de um modo mais incisivo, algo que ela está perdendo, deixando passar, algo que a pessoa não está... vendo. Ela está vendada – é como se lhe retirássemos dos olhos uma venda. Veja: não diga que a cação está perdida. A “canção” pode ser isso mesmo, uma música, uma obra de arte cuja composição se perdeu no meio do caminho; ou pode ser uma história, uma narrativa – a própria vida, talvez? Retome-a! “Nada terminou, nunca termina”, como ensina uma outra canção. E tem aquele “não diga”, como uma espécie de antimantra, dialogando com crenças muito antigas: diga, se tu quiseres afirmar algo diante da vida, do mundo – há poder na palavra, haveria magia nessa vocalização. Caso contrário, “não diga”.

            “Tenha fé em Deus, tenha fé na vida”: “veja”, mas mesmo que tu não possas ver retome a estrada mesmo assim – tenha fé. Tente outra vez. Depois, temos um “Beba, pois a água viva ainda está na fonte.” É a conhecida “cena” em que alguém é acudido com um gole de água – um primeiro socorro para o que quer que a pessoa tenha sofrido, como quem oferece um chá, ou a “água com açúcar” de nossas avós. O “ainda” pode significar que as condições iniciais, o sonho que animou os teus primeiros passos, ainda estão disponíveis. Dá para se nutrir de novo daquilo, daquela “água viva” – mas conheça a fonte, esse lugar original de partida.

            “Tente: levante sua mão sedenta (!) e recomece a andar. Não pense que a cabeça aguenta se você parar.” É verdade que há sistemas de crença e tradições filosóficas, como as do Oriente, que diriam exatamente o contrário: a cabeça só aquenta se você parar – a meditação, a “arte de parar”. É possível, porém, entender o que o sujeito lírico da canção está pedindo. Levante-se e siga em frente, tu estás enfraquecido e vulnerável demais para “second thoughts”: não pira. “Realize” que há um mundo à sua volta: “há uma voz que canta, há uma voz que dança, há uma voz que gira bailando no ar.”

            E temos um “Queira: basta ser sincero e desejar profundo.” Bem: sabemos que não basta ser sincero e nem desejar “profundo”: o jogo da vida, o jogo do mundo, pode ter outras ideias. Ainda assim, ser sincero e desejar algo com intensidade é o mínimo que podemos fazer, não é? O sujeito lírico, agora, é mais enfático: “Vai! Tente outra vez.” Repare o caro leitor/a que não se está dizendo simplesmente “tente”, mas “tente outra vez”. Ou seja, não terá sido a primeira crise. Um último verso reescreve o primeiro: “Tente: não diga que a vitória está perdida – se é de batalhas que se vive a vida.” O caminho à frente pode trazer realizações. Como em Sun Tzu, o sujeito lírico (um outro andarilho? Um eremita que desceu a colina para ajudar um precisado/a de ajuda?) adverte que a vida é uma guerra composta de momentos de tempo – de batalhas.

A chave de leitura desta canção pode não estar no sujeito caído/decaído – mas na figura que o insta a caminhar: como Erico Verissimo salientou em “Olhai os lírios do campo”, o sentido da viagem não está na chegada e nem na própria viagem: mas em sermos bons companheiros/as de viagem – o que te descentra e faz com que os teus companheiros (Drummond) passem a ocupem o centro da experiência da vida.

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